Esse texto foi tirado do medium da Sofia, clique aqui para acessar 🙂
Dez anos buscando a sorte (e a paz) em movimentos de repetição
respire fundo. até seu peito doer. segure cinco segundos. Tem que ser cinco. Não pode ser menos, nem mais.
solte o ar. Faça isso devagar. o corpo relaxa. mas o arrepio na espinha e na lateral do braço continuam. não deu certo.
Repita.
respiro fundo. até o peito doer. cinco segundos. Tem que ser cinco. Senão você não fica calma.
solto o ar. com calma. Devagar. o braço arrepia. a perna esfria. Foi rápido demais. não funcionou.
Repita.
alio a inspiração com o estalar dos dedos:
dedão. Respira. indicador. Até doer. médio. Segura. anelar. Cinco segundos. mindinho. Solta.
compenso minha respiração. mas só fiz com a mão direita.
Repita.
dedão. Estala. indicador. Respira. médio. Esquerda. anelar. Segura. mindinho. Clack.
Não sei a quanto tempo estou assim. Seis horas da tarde e já passaram duas estações desde que me dei conta. Todo mundo está fazendo alguma coisa.
o aviso apita. a porta abre. vejo o vão. me preparo para descer. Use o pé direito.
Todo mundo se aperta para sair, fico nervosa, mas eu consigo me acalmar quando piso com o pé direito na plataforma. Estou no vagão de sempre, na frente das escadas rolantes. Sou a quinta pessoa a subir nas escadas. O arrepio nos braços e o gelo na perna não são mais sentidos.
Eu me recompenso com pequenas manias desde os 10 anos. Começou com meu pé: primeiro o direito, depois o esquerdo — para entrar com sorte. No começo, entrava em todos os grandes lugares com o pé direito: era a escola para não serem malvados comigo; a casa para ficar tudo bem… Então passei a entrar em cada cômodo com a minha dança: a sala de aula para minha amiga não faltar; meu quarto para eu não ter dificuldades de dormir; o banheiro a noite para nada me pegar no escuro.
Em nome da boa fortuna, comecei um hábito que há quase dez anos brinca com as extremidades do meu corpo e com o meu conforto. Depois de um ano repetidamente entrando nos lugares com o pé direito e vivendo dias ruins, eu com 11 anos fiz minhas mãos cederem ao jogo: toque em tudo com a direita, depois com a esquerda. Quando ia tomar café da manhã, se não fizesse o combo entrar com pé direito na cozinha + pegar a xícara com a mão direita e depois toca-la levemente com a esquerda, o dia seria uma bosta. Eu me certificava que fosse, não conseguia relaxar até repetir.
Repita.
Direita, esquerda. Direita, esquerda. Uma garota no início de sua pré-adolescência não tinha como saber que estava regando sua auto-sabotagem, mas eu continuava lá: firme e forte acreditando nas magias do toque da sorte. Trazia conforto quando repetia, por isso continuei.
Não demorou muito para meus pais perceberem o que estava acontecendo. Entre meus onze e doze anos, minha mãe me viu entrando e saindo do quarto repetidamente. Ela estranhou o comportamento e reconhecendo as emoções da filha, percebeu minha angústia antes mesmo de eu saber o nome do que estava sentindo. Falei que não conseguia dormir — eu tinha tido um dia horrível na escola — e disse que queria “entrar certo”.
Não lembro ao certo como as coisas se encaminharam a partir dai. Creio que não demorou para ela reparar na dança dos meus dedos e a maneira que eu começava uma refeição: sempre tocando discretamente na borda do prato, talheres, toalha, mesa e na cadeira. Ás vezes que eu nem sabia que estava fazendo isso, a situação estava intrínseca demais.
Meu comportamento na escola mudou muito nessa época. Afinal, eu que sempre fora uma aluna que conversava, comecei a ficar no canto da sala lendo livros. Outros detalhes do meu jeito começaram a vir a tona: comecei a arrancar a peles levantadas envolta das unhas, ferindo minha mão.
Não sei porque fazia isso, talvez foi a forma que eu enxergava que iria trazer a sorte de volta. O toque não funcionava, então iria puni-lo; ou acorda-lo para ele voltar a fazer sentido. A Sofia pequena já sabia que queria estar no controle da sorte da sua vida, girasse a roda para onde fosse, ela iria com sua dança e seus toquinhos para acompanha-la.
Já se passaram quase dez anos e todo dia eu danço. Conforme o tempo passou, algumas manias foram embora e outras vieram no lugar. Tiveram épocas em que arrumava a cama e desarrumava toda noite se estava com insônia; outras, eu tocava com a direita-esquerda qualquer textura diferente de um lugar que eu estivesse sentada; já cheguei a mudar de calçada porque não pisei com o pé certo quando atravessei a rua. Hoje em dia antes de dormir, arrumo todas as cadeiras da cozinha, entro com o pé direito no quarto, ligo e desligo a luz três vezes, arrumo minha cama até ela estiver certa. Ou repito.
A repetição, assim como meus toques (toc, que seja) se tornou parte da minha vida. Existe algo curioso com a maneira que as partes do corpo estão relacionadas com a personalidade: tento agarrar tudo, trazer a sorte para todos ao meu redor — e tento me certificar disso — mas tudo o que eu consigo fazer são toques sutis, encontros quase imperceptíveis e voláteis.
Vivo de impressões digitais espalhadas por pessoas que já cruzei e lugares que passei, dedos que marcam e vão embora. Confortos momentâneos e intensos, mas que logo precisam ser supridos por outras doses homeopáticas de sorte com gosto agridoce.
Sigo tentando tocar tudo ao meu redor, dando um pouco de mim e me tirando outro tanto. Nos intervalos entre um ato e outro, as vezes trombo com algumas coisas que merecem um toque maior, requerem sorte. Algumas, sei que toquei com mais intensidade, outras se dissiparam no ar.
De qualquer forma, a música eventualmente volta e o ciclo recomeça.
respira.até o peito doer.segura.cinco segundos.tem que ser.solta.devagar./repete.estala os dedos.mão direita.dedão.indicador.médio.anelar.mindinho.respira.até o peito doer.segura cinco segundos.não mais.não menos.solta com calma./repete.mão esquerda.dedão.indicador.médio.anelar.mindinho./repete.entra pé direito.pé esquerdo./repete.sai.entra.pédireitopé./repete.sai.entra.pédireitopéesquerdotocadireitatocaesquerdatocadiretatocaesquerdarepetetocadiresquerdatocarepetetocatocatocadireitocaesquerdtocatocatoc.
para sempre.